terça-feira, 20 de julho de 2010

pisco e frutas


O fim de semana foi de bebericos. E de grandes encontros: gente querida chegou de viagem, gente querida veio se despedir, tudo motivo pra estarmos juntos em torno da mesa, em comunhão.
Foi assim, comungando, que inventamos uns drinques bem bons. Nossa, beeem bons!
Um casal atiladíssimo, que está de malas prontas pra se lançar numa nova vida, trouxe pra cá, entre outros presentes, coisinhas bacanas da casa que estão desmontando, uma garrafa de pisco (lembra?) e uma cafeteira pra um café, delicada herança de família, relíquia da avó que, vejam só, veio parar aqui, nas minhas mãos, pra eu fazer meus cafezinhos enquanto estudo! Fiquei emocionada toda vida.
Era mesmo momento pra um brinde e, animados pra fazer o pisco sour de outro dia, descobrimos que não tinha ovo! Oh… E também só tínhamos limão-cravo – coisa fina, da chácara da minha vizinha, mas não era o ingrediente clássico… Pois abrimos o freezer pra ver se ao menos gelo havia e, que sorte!, demos com as polpas de fruta congeladas, que costumo ter pra sucos, caldas, doces e repentes como esse.
Decidimos, então, numa primeira rodada, por um pisco com cupuaçu. Ficou simplesmente ótimo. O cupuaçu já tem aquela aura de bebida noturna, um quase álcool que se acentua saborosamente com a mistura:
½ copo americano de pisco
1 pacotinho de polpa de cupuaçu (aqueles de supermercado mesmo)
3 colheres de sopa de açúcar (branco)
1/2 limão cravo
1 copo americano de gelo
Bate-se no liquidificador, pouco tempo e em alta velocidade, até o gelo ficar em miúdos fragmentos. Fica ligeiramente espumante. Rende umas 6 doses. Tomamos em tacinhas simples. Delícia. Houve aquele estranhamento inicial (os hábitos do paladar são poderosos, e as expectativas criadas pelos scripts também, né?- e as receitas costumam ser scripts...), todos se olhavam num semi-silêncio, mas aí foram explodindo os comentários enebriados: hummm, ahhh, nooossa, bom demais...
E as bebidas têm disso, né? São pra curtir, saborear, deixar entrar no corpo e na alma, aos poucos, no meio do papo. Tudo vai ficando cada vez mais simpático, suave, amigo...
Aí achamos que era o caso de nova rodada, mas não tinha mais cupuaçu. Diante da experiência, tendo percebido que importava não usar frutas muito adocicadas, tipo graviola, pois o que fazia o par perfeito com o pisco era um certo amargor elegante no final do gole, decidimos pela amora. Isso, pisco com amora. Desta vez, íamos seguindo a receita de sucesso quando alguém se lembrou do gengibre, de como essa raiz cai bem em drinques, sobretudo com frutas e mel. O que aconteceu foi:
½ copo americano de pisco
1 pacotinho de polpa de amora
1 e ½ colher de sopa de açúcar (branco)
1 limão cravo
4 lascas de gengibre (ao todo, 1 cm mais ou menos)
2 colheres de sopa de mel silvestre
1 e ½ copo americano de gelo
Gente do céu! Além da lindeza que é a cor da amora toda feliz ali nas taças, que coisa mais gostosa! Tudo de bom pra um encontro com esses amigos com quem sempre partilhamos soltura e espontaneidade. Ó no que deu: pura criação! E era aquela alegria exclamativa na cozinha, sabe? Felizes que estávamos com o achado.
É com esse espírito que faço aqui o registro de um poema que eu pensava oferecer a eles no dia da viagem que farão, mas que ofereço agora a todos que a ele vierem. Porque a vera comunhão transcende o rito que a institui. São versos do poeta grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933), traduzidos aqui pelo poeta José Paulo Paes. O poema fala dessa força que há que ter no lançar-se ao mundo, vasto mundo, que é sempre um lançar-se a si, vasto si. Ei-la:

ÍTACA

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Abraço esses meus amigos com um bem-querer imenso.

Um comentário:

  1. Que bela lembrança fica desse dia de criação dos drinques. Mas o que esperar, uma vez dentro de sua cozinha ? Senão, amizade e muitos motívos para brindar ? E, claro uma gastronomia em sentido amplo, sempre rica e cheia de camadas. Generosos que são, sempre facilitam descobertas, aprendizados, compartem saberes e idéias. Dentro de sua cozinha começa, seguramente, a jornada para Ítaca...

    ResponderExcluir