Claro que a receita que vou contar não foi feita no tacho – quem me dera! Pra cozinhar no cobre, no latão, etc., eu tinha que ter outro fogão, outra cozinha e talvez outro tempo, não sei... Estou me lembrando muito hoje de Dona Maria do Rosário e Dona Maria Só (chamavam-na assim porque as irmãs todas eram Maria disso ou daquilo, ela não, ela nada).
Ambas cozinhavam só no tacho, nos tachos. Eram muitos, de diferentes tamanhos, e elas areavam, areavam... Eu me lembro deles todos distribuídos em degraus diferentes daquele pedaço de cimento do “doceiro”, que era um cantinho de quintal bem escondidinho, lá no fundo do imenso pomar, onde um fogão a lenha ardia noite e dia e, de segunda a sábado, as Donas Marias vinham fazer doce. Doce das frutas da época, coisas com leite e manteiga, farinhas variadas, ovos... doces de fazenda.
Isso era já anos 1970, numa casa grande (e outrora rica) que eu frequentava nas férias, e que tinha lá as Marias doceiras, a fazer doces todo dia. Anos a fio, décadas, sempre as duas a conversar, conversar, conversar, e toca a mexer nos tachos, sentar um pouco no banquinho de madeira espichado ao longo da parede... E tudo de novo. O dia todo, desde cedo.
Às vezes uma delas ia colher frutas ali no pomar, que tinha manga, mamão, jaboticaba e umas outras. Às vezes um carregador levava até elas outras frutas ou o leite, que vinha uma vez por semana, e ficava ali de prosa um pouco. Elas faziam café. Tinham um “bule pras visitas”. E tinha também a criançada, que vinha rapar o tacho. Que delícia! Mais nos fins de semana. No meio da petizada, tinha sempre umas duas ou três meninas que ficavam mais tempo, quietinhas, ouvindo a conversa das Marias, que não terminava nunca, e ia se fazendo, doce e lenta, como as misturas nos tachos.
Eu achava aquilo lindo, único, mágico. Aprendi muitas rezas e receitas ali. Aprendi também sobre a maldade dos homens... Dona Maria Só não tinha nem registro, como dizia. Quando morreu, foi enterrada ali, por pedido dela e também porque não havia papéis, nada que informasse quem era, de onde vinha, que tinha existência legal...
Eram duas mulheres com poucos dentes, mas de sorrisos largos e respiração cadenciada. Dona Maria do Rosário me disse uma vez que a vida dela era muito, muito triste (todo mundo sabia de algumas das suas tragédias familiares), e por isso ela tinha aceitado viver ali, fazendo doce, "porque doce dá alegria", dizia, pra ela e pra quem comesse. Ela falava isso com uma bondade tão desabrida que até me doía.
Pensando no dia internacional da mulher, quero lhes render homenagem: fiz uma das receitas que elas faziam amiúde - limão no tacho. Era um doce barato, das épocas em que outros ingredientes rareavam. Veja só:
- 4 limões suculentos
- ½ kg de açúcar mascavo (elas falavam “do açúcar ruim”, porque era sobra)
- 60g de manteiga (se for usar ghee, um pouco mais: 80g talvez)
- 3 ovos (de galinhas felizes, claro)
- 3 florzinhas de cravo (só!)
Em vez de tacho, uso uma caçarolinha de vidro, que também retém bastante o calor e, em fogo baixo, faz um efeito que lembra, de certo modo, o tacho sobre a lenha.
Raspe os limões e misture essa raspa com o suco deles espremidos (não bata no liquidificador com bagaço, fica muito amargo e também altera a liga); acrescente o açúcar, mexa bem, já em fogo baixo; acrescente a manteiga, os três cravinhos e, quando essa mistura começar a ferver, bote os três ovos pra bater (usei batedeira).
Sim, as Marias faziam tudo isso no muque! Inclusive a própria manteiga!
Por cerca de 10 minutos os ovos vão bater (em velocidade mínima) e, no fogo, com uma boa colher de pau, vai-se mexendo em círculos, sem pressa, a espuma do açúcar que sobe, perfumando a casa toda de limão.
Dez minutos passados, acrescente os ovos batidos à mistura que está lá, sempre em fogo baixo, e mexa suavemente, pra eles irem sendo incorporados, aos poucos.
Isso vai acontecer por uns 40 minutos, até engrossar. Esse tempo depende do tipo do açúcar, da umidade do dia, do seu espírito... você vai ficar por ali, mexendo, esperando. Hora ótima pra ler alguma coisa, dar telefonemas, fazer uns exercícios de alongamento... O lance é sempre mexer, não deixar grudar no fundo nem fazer muitas camadas na superfície – quanto mais homogêneo o aspecto, melhor.
Quando o caldo estiver bem viscoso, experimente jogar umas gotas numa superfície fria, como a pedra da pia, e veja se está um creme bem pastoso, denso.
Daí, é pôr na vasilha final, deixar esfriar e geladeira nele, pelo menos uma hora.
É um doce bem doce, de comer com queijo, no contraste doce/salgado. Ou numa colheirada no meio do dia... A criançada adora! Tem o gostinho da torta de limão clássica, mas textura e cor de bananada.
Lembro que Dona Maria Só punha, às vezes, uns biscoitos de maizena esmigalhados no fundo da travessa, antes de verter a massa quente. Era bem bom. Eu pus umas raspinhas poucas por cima, só por charme.
Enfim, só posso desejar que Dona Maria do Rosário e Dona Maria Só estejam em paz e contentes.
Deus sabe como lhes sou grata pelas tardes que me deixaram ficar ali, sentada no tal do banquinho.
Que lindas essas Marias. Fazer doce dá mesmo alegria na gente. Esse é de salivar... rsrsrs
ResponderExcluirAdoro o sabor da torta de limão e esse ficou tão verdadeiro!
Que bonita e singela essa homenagem, Lu!