Hoje minha sobrinha ranhetou um bocado aqui na cozinha. Ela é pequenina, bastante inteligente, criativa, mas também um ser de sua geração: exigente e, digamos, com bastante liberdade para exigir já aos 4 anos. O motivo: quando ela chegou, já havia visitas e todos estavam curtindo um cafezinho com doces sírios, ela dizia que queria comer alguma coisa, mas não aquilo que ela não sabia o que era. Tanta gente ficou insistindo, que ela acabou chateada e chateando, miava uma ladainha... "não conheço, não quero, não gosto"...
Bem sabemos que os doces sírios bem feitinhos são superboa pedida na categoria guloseimas – são calóricos e tal, claro, mas é tudo ingrediente bom, mel em vez de açúcar refinado, massas folhadas muito finas e mais pra sequinhas, são assados e não fritos, têm massa de castanhas em vez de creme de leite e outros derivados lácteos... Coisa boa mesmo. Mas a comida está pra muito além da razão, assim como uma menina de 4 anos.
Eu, sinceramente, vendo o tipo de coisa que ela aprecia, acho que adoraria os tais docinhos, mas entendo perfeitamente que, olhando pra cara deles, com o repertório que tem, desconfie e recuse. Dar-se a uma nova experiência gastronômica não é simples. Quantos sustos já tive, quantos achados, é verdade, mas quantas mágoas também... Enfim: comer algo novo pode ser vertiginoso. E nem sempre estamos assim disponíveis pra vertigem, né? Há, inclusive, os que estão mais e os que estão menos disponíveis... e há muito falatório sobre o que se deve comer, o que não se deve, etc.
Sobre isso, continua valendo o de sempre, ou seja, o que valia pras minhas elegantérrimas avós: bom senso. O que inclui mais do que conhecimento científico sobre os alimentos, tem a ver com conhecer alguma coisa sobre a origem desses alimentos, sobre o modo como são tratados até chegar a nossas mesas, e tem a ver também com uma percepção do que somos. Uma tia queridíssima me contava tempos atrás do seu suplício tentando comer pão integral, porque a farinha branca é um reconhecido vilão, tralalá, conhecemos a reza. Mas acontece que ela digere mal a farinha de trigo integral e começou a ser um desprazer comer pão. Meu deus! Um desprazer comer pão?! Antes equacionar as quantidades do pão branco do que se obrigar ao indigerível, não é não?
Só de pensar o quanto abusamos cotidianamente dos ácidos – que estão em tudo que é caixinha (mesmo de sucos integrais, não adoçados, etc.) e em um monte de frutas, no café, no leite e derivados, farinhas de trigo... Conhecemos pouco dos alimentos e, pior, pouco dos nossos próprios metabolismos, que – atenção! – mudam ao longo da vida.
A gente não pode comer uma mesma e única combinação uma vida inteira. É rigidez demais, tá na cara que uma hora vai cair como pedra! Temos fases, temperamentos, experiências, convívios... A boa comida tem a ver com a boa vida, e esta, como diziam minhas avós (as duas, tão diferentes que eram uma da outra!), tem a ver com comedimento. E não com cerceamento, bem entendido.
Tem a ver com transitar entre fantasia e realidade, inferência e percepção, hipótese e constatação... – faces da totalidade humana.
Domingo, a esta altura, depois dessa “chamada”, só posso oferecer uma divertida reflexão sobre esse trânsito tênue que está num post recente de um blog finíssimo – o do Josafá Crisóstomo.
Amanhã, dia de batente, conto o almoço que vai rolar.
Luciana,
ResponderExcluirCriança é sempre um tema infinito paras as postagens todas, não é mesmo?
Eu também tenho uma sobrinho danadinha. rsrsrs
Você sabe que com relação aos doces sírios eu próprio tenho um compartamento parecidíssimo. Sei que são deliciosos porque já experimentei mas no começo também não ia com a carinha deles: é aquilo que você falou acerca de que uma experiência gastronômica nova não é simples, mesmo!
Obrigado pela indicação do meu post. Achei tudo de fato tem tudo a ver com o tema em questão! Leitura e releitura dos desejos infantis.
Perdão. Fiz um comentário em que pareço um disléxico digitando... rsrsrs
ResponderExcluirLindo post, me fez lembrar de um trecho da introdução à um dos livros de Bertrand Russel, O Elogio ao Ócio, escrita por Howard Woodhouse.
ResponderExcluirLogo no começo ele diz assim: " ...neste jardim há um pé de abricó velho e retorcido, rachado pela idade, que a cada ano produz uma quantidade menor de seu suculento fruto. Mas seus galhos ainda davam sombra suficiente para que eu pudesse me dedicar ao prazer de ler no ensaio O conhecimento 'inútil', o relato de Russell sobre a chegada dos pêssegos e abricós ao Ocidente. Eles começaram a ser cultivados na China, durante a dinastia Han, depois foram levados para a Índia e mais tarde para o atual Irã, até chegarem finalmente a Roma. A etimologia da palavra "abricó" remete à mesma raiz latina de "precoce", devido ao fato de a fruta amadurecer cedo. O 'a', no entanto foi acrescentado por engano.
Russell lança mão desse exemplo para mostrar como o conhecimento pode tornar a fruta mais doce, aumentando e enriquecendo nossa experiência com um sentido de alegria que, sem ele, estaria talvez ausente."
A propósito, os abricós ou damascos tem tudo a ver com esses docinhos rejeitados, não ?